Hoje acordei casada com você. Estava na sacada do apartamento claro, tomando café, sentada sobre uma cadeira dessas de varanda, de varanda de gente casada. Cadeira de almofadas coloridas, cores de Miró. Você sempre gostou do Miró.
O café quente fazia vapor para eu soprar, e eu soprava como quem esfria leite antes de dar ao filho. Eu soprava e olhava o movimento do café escuro na xícara branca. Xícara branca e grande, dessas que não pertencem a jogos, vêm soltas, livres e sozinhas como eu fui um dia. Nunca mais eu quis ser xícara depois de você. Por isso acordei casada.
Amanhã vou levar nossa filha ao jazz, vestida em lycra e moletom. Barrigudinha, as pernas longas e magras, corpo desproporcional de menina de dez anos. Os olhos enviesados de Lily Briscoe, eu a chamo de minha ‘pequena miss sunshine’ e você sorri, lembrando do filme engraçadinho e de como ela se parece com a miss, só que com seus olhos, os seus olhos enviesados.
Deixei você dormindo para ir olhar as ondas de cima, pela sacada, eu sempre amei o mar. Eu já amava quando era só um reflexo na sua janela, longe da minha terra, e eu longe do seu olhar cheio de mar. Você escolheu a vista e me mostrou, me deu o mar. Quis casar. Hoje amanheci ao seu lado na cama.
Você ficou no quarto, cama em verso, chão em prosa, parede em melodia, sofá samba-canção. Dormindo depois de casar comigo, morar comigo, me dar seus lusitanos, em troca dos meus tão brasileiros. Levei meus discos, meus escritos, minha boca. Pedi suas mãos bonitas e a minha desordem que vem colada à sua, sua boca minha.
Amanhã quando estiver voltando do trabalho compre cerejas, daquelas em calda, das que como apaixonadamente, enchendo a boca da boca de quem se ama.
Queria sair para caminhar, olhar a rua e comprar as coisas para o café da manhã, mas não posso perder de te ver acordar e dizer sorrindo que eu disse sim, ‘feliz de mim porque ela disse sim’.
O melhor foi negar. Neguei minhas convicções e descobri que liberdade é para quem tem medo de amar. Foi Luz quem disse, num conto da Piñon, você nem gosta da dela - da Nélida - mas soube apreciar Luz dizer: “Liberdade é para os fracos... então a amei”. Neguei o sonho de mulher moderna, que caminhava entre viajar, não casar, ser do mundo. E depois de tanta modernidade eu quis ser a velha, a que te namorou, te noivou, te casou e te ama. E de amar assim, casou-se contigo num sonho clichê, de filme lugar comum, de história de romance de bolso.
Hoje vou dormir vendo suas pernas enroscarem-se às minhas, sentindo o cheiro da sua respiração, vou dormir te ouvindo dizer, lábios colados aos meus, que nossa felicidade conta-gotas vai encher a casa de mar.
2009/11/09
2009/10/27
Monóculo
Na confissão do dia uma noite que terminou bem. Acreditar no bem era, àquela altura, quase uma profissão de fé. Mas não há fim, só um instante contente, daqueles pelos quais os momentos felizes se configuram. O in the end é apenas o princípio, ingrato ou grato, não se sabe ... mas é por onde se faz recomeçar. Confesso, derramando obviedades: as cartas foram deitadas à mesa nas instâncias mais urgentes, tangentemente eu senti alívio - era como se o limiar de cada coisa se mostrasse gentil à noite. - Eu via um retrato por um monóculo. Tinha um olhar condescendente, aumentava diante dos meus olhos: é o bem que eu fiz, pensei. E é assim, diante dos meus olhos ele se vai aumentando, mas por entre os meus dedos ele é menor que um negativo fotográfico. Depois pensei que fosse o retalho de alegria sugerida pelo fim da noite. Se faz pequena a depender da minha maneira de olhar, eu olho de perto, aumenta, tanto que a imagem se desfaz, embaça ... me olha assim enviesada. Quem olha? O pedaço de alento me olha. Eu olho. Enxergo luz, tanta luz que a minha vista desconstrói a imagem. Talvez eu leia de novo o SEU Jorge de Sena, ele me diz todos os dias: 'O mais seguro, porém, é não recomeçar.'
2009/09/27
Bailarina
O corpo de bronze prepara a dança lasciva
O corpo rijo, a pele crua, a dança nua
Luzes explodem em cristais e cores - a Tua
Sob a língua do sol o lençol da tua pele saliva
A face fria transborda a prata translúcida
O cabelo a derreter, o colo a intumescer, oferecer
Da flor do rosto, entreaberta, o convite de amanhecer
A prata transpira a loucura da carne úmida
No balé do ouro a sinestesia cruciante dos elementos
A lava dourada escorrendo, queimando, ardendo
As curvas, os saltos iluminados, o olhar sedento
A riqueza dos metais roubada dos teus movimentos
Na tua aflição és bronze, és ouro, és prata. Riqueza.
Os olhos de choro, de gozo, de grito e explosão
Deleito-me no cansaço que restou da erupção
Não há dança, corpos mortos, um só corpo. A beleza.
O corpo rijo, a pele crua, a dança nua
Luzes explodem em cristais e cores - a Tua
Sob a língua do sol o lençol da tua pele saliva
A face fria transborda a prata translúcida
O cabelo a derreter, o colo a intumescer, oferecer
Da flor do rosto, entreaberta, o convite de amanhecer
A prata transpira a loucura da carne úmida
No balé do ouro a sinestesia cruciante dos elementos
A lava dourada escorrendo, queimando, ardendo
As curvas, os saltos iluminados, o olhar sedento
A riqueza dos metais roubada dos teus movimentos
Na tua aflição és bronze, és ouro, és prata. Riqueza.
Os olhos de choro, de gozo, de grito e explosão
Deleito-me no cansaço que restou da erupção
Não há dança, corpos mortos, um só corpo. A beleza.
2009/09/17
CIDADE FRIA
Ao meu grande amigo ... com carinho, açúcar e afeto. Na esperança de que tudo se encaminhe para um happy end. (Pela amizade concreta, regada a sucos, risadas, questionamentos e vida!)
Do meio da frieza daquela cidade, a gentileza da xícara de café servida na cama precedia o primeiro cigarro e o primeiro beijo. Anunciava as cores que o dia teria, cores roubadas de você.
Mas era quando você se despedia, era aquele o momento em que a cidade assumia todo o cinza, toda a tristeza, toda a chuva que a sua ausência deixava.
Ao inferno os segredos europeus da cidade, às ruínas a sua gente indiferente. Toda a distância cruelmente edificada entre nós tornava aquela terra inabitável, ao menos para mim.
Nosso amor era jovem e cheio de planos, tal como os amores jovens devem ser. Me lembro de passar horas olhando os seus cabelos, procurando a melhor forma de enrolar-me a eles. Eu podia me perder entre os teus olhos e boca, tão simétricos, doces como a juventude que desenhava o seu corpo.
Foi a cidade nua que me fez triste, depois frio. Aquela capital cheia de uma multidão impiedosa não era capaz de entender o vazio de você. Roubou-nos o desejo de amar e com ele vi o amor ser desconstruído. Se esvaindo entre uma briga, um choro e um pedido de socorro.
Só sei dizer que entre os clichês mais odiosos está a nossa impotência frente à distância. Tão odioso quanto verdadeiro. Eu podia tocar meu desespero.
Não se trata com tanta indelicadeza um amor jovem. Não se mata de tanto amar esse mesmo amor. Não se escapa ao peso da vida, ainda que se tenha a juventude a favor.
A cidade fria levou consigo quem eu era, deixou aqui alguém que não reconheço e, entre as tantas dores deixadas, a maior de todas não foi perder-te, mas ver ir contigo tudo o que se vai quando um amor acaba.
À juventude que ainda nos restou, às possibilidades de nossos caminhos não seguirem paralelamente até o fim, à volta para casa eu devo a vida que ainda tenho nas mãos. Na cidade gris ficou um cemitério, sob o sepulcro somente os ossos ressequidos de alguém que não deixou saudades, felizmente está morto.
Do meio da frieza daquela cidade, a gentileza da xícara de café servida na cama precedia o primeiro cigarro e o primeiro beijo. Anunciava as cores que o dia teria, cores roubadas de você.
Mas era quando você se despedia, era aquele o momento em que a cidade assumia todo o cinza, toda a tristeza, toda a chuva que a sua ausência deixava.
Ao inferno os segredos europeus da cidade, às ruínas a sua gente indiferente. Toda a distância cruelmente edificada entre nós tornava aquela terra inabitável, ao menos para mim.
Nosso amor era jovem e cheio de planos, tal como os amores jovens devem ser. Me lembro de passar horas olhando os seus cabelos, procurando a melhor forma de enrolar-me a eles. Eu podia me perder entre os teus olhos e boca, tão simétricos, doces como a juventude que desenhava o seu corpo.
Foi a cidade nua que me fez triste, depois frio. Aquela capital cheia de uma multidão impiedosa não era capaz de entender o vazio de você. Roubou-nos o desejo de amar e com ele vi o amor ser desconstruído. Se esvaindo entre uma briga, um choro e um pedido de socorro.
Só sei dizer que entre os clichês mais odiosos está a nossa impotência frente à distância. Tão odioso quanto verdadeiro. Eu podia tocar meu desespero.
Não se trata com tanta indelicadeza um amor jovem. Não se mata de tanto amar esse mesmo amor. Não se escapa ao peso da vida, ainda que se tenha a juventude a favor.
A cidade fria levou consigo quem eu era, deixou aqui alguém que não reconheço e, entre as tantas dores deixadas, a maior de todas não foi perder-te, mas ver ir contigo tudo o que se vai quando um amor acaba.
À juventude que ainda nos restou, às possibilidades de nossos caminhos não seguirem paralelamente até o fim, à volta para casa eu devo a vida que ainda tenho nas mãos. Na cidade gris ficou um cemitério, sob o sepulcro somente os ossos ressequidos de alguém que não deixou saudades, felizmente está morto.
2009/08/09
PELE EM FLOR
Tens as mãos lindas, mas é a tua boca que me fere
Feridas feitas a dentes, lábios e língua
Tens a boca linda, mas são as tuas mãos que me violam
Maculam minha pele, desenhando a unha e saliva
Tens os dedos errantes, à procura pelos meus caminhos
Tens os dentes cravados em mim como espinhos
Tens o intervalo entre a noite e o dia e mais
Tens o primeiro e o último pensamento, tens os sonhos
Tens meus desejos pele em flor e a brasa acesa
Tens a saliva a derreter a minha língua inteira
Tens nos dedos o meu norte, minha sorte
E tudo quanto quero beber cai da tua boca
Tens o meu medo de errar os teus olhos
Tens o meu corpo encharcado a paixão
Tens tudo tal como queres, não pedes
Tens o bom dos meus dias e noites em ti.
Feridas feitas a dentes, lábios e língua
Tens a boca linda, mas são as tuas mãos que me violam
Maculam minha pele, desenhando a unha e saliva
Tens os dedos errantes, à procura pelos meus caminhos
Tens os dentes cravados em mim como espinhos
Tens o intervalo entre a noite e o dia e mais
Tens o primeiro e o último pensamento, tens os sonhos
Tens meus desejos pele em flor e a brasa acesa
Tens a saliva a derreter a minha língua inteira
Tens nos dedos o meu norte, minha sorte
E tudo quanto quero beber cai da tua boca
Tens o meu medo de errar os teus olhos
Tens o meu corpo encharcado a paixão
Tens tudo tal como queres, não pedes
Tens o bom dos meus dias e noites em ti.
2009/08/07
Empáfia
Nesses dias em que a beleza está esparramada sobre a mesa, sinto um certo incômodo por ter acostumado meus olhos com o belo menos óbvio, não me acostumo com essa beleza que de tão evidente se fez pálida e monótona. Em cada esquina as curvas das modelos das passarelas se confundem com as silhuetas bem delineadas das exuberantes manequins de academia, tão vazias de si, mas tão cheias de uma imponente certeza de serem belas!
Nesses dias em que o bonito é ser igual, um desconforto me toma de ver as noites e suas rainhas de uma cara só, de uma roupa só, de um comportamento só, de uma elegância só. Me sinto só. Ora, mas o que posso fazer se Deus não me fez rainha, nem modelo ou manequim? Infelicidade minha não ser assim igual, infortúnio meu essa estranha mania de ser só minha, de gostar das minhas coisas tais como elas são, de facilitar a minha vida com modas mais descomplicadas, com gostos menos volúveis.
Eu não tive a sorte de aceitar a moda assim como ela é imposta, tenho essa empáfia de não sair engolindo tudo o que me empurram goela abaixo. Sempre fui teimosa, minha mãe dizia isso antes de eu notar ... essa teima e essa postura quase orgulhosa me encheram de “qualquer coisa que ri, qualquer coisa que chora, qualquer coisa que sente saudade” ... “me encheram de qualquer coisa além da beleza.” Me sinto só, mas não me entristeço. A vida é assim. Já dizia a minha avó:
-Tem quem goste do olho!
Eu gosto mesmo é do olhar.
Nesses dias em que o bonito é ser igual, um desconforto me toma de ver as noites e suas rainhas de uma cara só, de uma roupa só, de um comportamento só, de uma elegância só. Me sinto só. Ora, mas o que posso fazer se Deus não me fez rainha, nem modelo ou manequim? Infelicidade minha não ser assim igual, infortúnio meu essa estranha mania de ser só minha, de gostar das minhas coisas tais como elas são, de facilitar a minha vida com modas mais descomplicadas, com gostos menos volúveis.
Eu não tive a sorte de aceitar a moda assim como ela é imposta, tenho essa empáfia de não sair engolindo tudo o que me empurram goela abaixo. Sempre fui teimosa, minha mãe dizia isso antes de eu notar ... essa teima e essa postura quase orgulhosa me encheram de “qualquer coisa que ri, qualquer coisa que chora, qualquer coisa que sente saudade” ... “me encheram de qualquer coisa além da beleza.” Me sinto só, mas não me entristeço. A vida é assim. Já dizia a minha avó:
-Tem quem goste do olho!
Eu gosto mesmo é do olhar.
SOTURNA MANHÃ
Eu não queria que raio de luz nenhum invadisse o meu quarto, mas implacável, tal como o tempo que corre, aquela manhã violou minha cortina por entre as frestas, desde o nascimento eu desejava, involuntariamente, que aquele dia fosse abortado. Era como se eu pudesse prever a tristeza que aquela manhã carregava em seu ventre, antes mesmo de eu saber o quanto seria tomada por um silêncio ensurdecedor, eu permanecia calada.
Você voltou da rua com os mesmos pães de queijo, alguns pães frescos, frutas e tudo o mais que comprava em manhãs de sábado para o nosso café. Mas os seus olhos, esses eu não reconheci. Trazia qualquer coisa como uma amargura lancinante e uma esperança de vida que há tanto você não tinha. E eu sabia que os traços de esperança nada tinham a ver comigo, nem conosco, nem com o café da manhã de sábado, de todos os sábados. Eu sabia também que aquele dia jamais deveria ter nascido, eu senti quando o sol invadiu a casa e eu não te encontrei na cama, eu senti, meu amor, toda a tristeza que aquele dia tinha, amarga como os pães que você me trouxe.
E do meio de uma mudez matinal, dessas de café da manhã de sábado, eu ouvi suas reclamações, não soavam como um pedido de socorro, mas como um pedido de desculpa que antecipava as suas justificativas. Ouvi seu choro misericordioso, a mala pronta, recebi o abraço que antevia a morte e escutei o barulho da porta batendo, fechando dentro da casa uma alma vazia, um aleijo. Arrancou-me um braço.
Mais tarde, não consigo lembrar quantas horas ou dias depois, mas me lembro que levantei, fui até a cozinha e os pães e frutas ainda estavam sobre a mesa. Fazia frio, mas eu não sentia nada, não sentia o frio ou a fome, não sentia o tempo correr por entre as frestas da cortina, só sentia doer o braço arrancado de mim.
A sua ausência era como a falta dos sentidos. A soturna manhã transformou a minha vida em um universo sem som, sem cheiro, sem cor e sem gosto. Há muito eu havia me habituado aos seus barulhos e canções, aos cheiros do seu banho e perfume, ao gosto da sua saliva misturado ao cheiro das frutas que você comia pela manhã. Minha casa estava gris desde que aquela porta se fechou.
Não sei dizer quando foi que eu deixei de odiar as manhãs, todas elas, não só as de sábado. Só sinto que não as odeio mais, é como olhar para o assassino de um filho e sentir piedade, ou não sentir nada. Houve um momento no meio do caminho em que eu pude não pensar em você, mas isso causava em mim uma certa estranheza, eu não me reconhecia ali. Mas me acostumei a não olhar a vida pelos seus olhos, eu deixei de olhar a vida.
As fechaduras das portas, os cadeados, todas as trancas da casa permaneciam intactas, pois eu lembrava de ter visto você levando as suas chaves e isso, de alguma forma, me trazia algum alento. Era a esperança cega que eu tinha em vê-lo entrar, num dia qualquer, colorindo a casa e enchendo-a de você.
Parei de contar o tempo depois do primeiro ano de dias sem manhãs, àquela altura eu já saía para o trabalho, visitava velhos amigos, sorria um pouco, tomava algumas bebidas que não me lembrassem o seu gosto. Eu até viajei, conheci Porto Rico sem que você estivesse ali. É claro que eu lembrava de quando os planos eram de um casamento em San Juan, com cerimônia e tudo quanto eu queria. No entanto, meu bem, eu conheci San Juan e as outras ilhas, tudo isso sem ser pelos seus olhos. Aos poucos, eu me desvencilhava de você.
N’outra noite, não lembro se quarta ou quinta-feira, eu ouvi a porta abrir, senti minha boca amargar, o mesmo gosto que o pão daquela manhã deixou. Era você, e veio sem me dizer nada, me tomou pelos braços sem nenhuma palavra, tinha o mesmo cheiro, o mesmo gosto. Nós nos amamos ali na sala, depois em nossa cama. Eu ouvi você dizer, depois de tantas horas, alguma coisa sobre o universo parar de girar quando era eu quem estava nos seus braços. Eu ouvi suas justificativas antecipando o pedido de volta, como um convite à vida. Mas eu estava morta.
Naquela mesma cama, onde só o meu cheiro te fazia sair do mundo, naquele mundo onde as suas células quiseram todas engolir as minhas, eu pude dizer sem lágrimas mas não sem dor o quanto eu te amei um dia. Eu disse, meu amor, um dia. O dia que tinha manhã, nesse dia e em tantos outros eu te amei.
Não sei em que parte do caminho eu deixei de te amar, mas sei que os dias não voltaram a ter manhã, nem com a sua volta. Eu não fui capaz de amá-lo outra vez, o meu amor engoliu a si mesmo, deixando em mim uma fotografia daquelas horas em que esteve comigo, compondo o álbum de retratos da vida que tivemos juntos. Em minha boca restou apenas o gosto do pão.
Você voltou da rua com os mesmos pães de queijo, alguns pães frescos, frutas e tudo o mais que comprava em manhãs de sábado para o nosso café. Mas os seus olhos, esses eu não reconheci. Trazia qualquer coisa como uma amargura lancinante e uma esperança de vida que há tanto você não tinha. E eu sabia que os traços de esperança nada tinham a ver comigo, nem conosco, nem com o café da manhã de sábado, de todos os sábados. Eu sabia também que aquele dia jamais deveria ter nascido, eu senti quando o sol invadiu a casa e eu não te encontrei na cama, eu senti, meu amor, toda a tristeza que aquele dia tinha, amarga como os pães que você me trouxe.
E do meio de uma mudez matinal, dessas de café da manhã de sábado, eu ouvi suas reclamações, não soavam como um pedido de socorro, mas como um pedido de desculpa que antecipava as suas justificativas. Ouvi seu choro misericordioso, a mala pronta, recebi o abraço que antevia a morte e escutei o barulho da porta batendo, fechando dentro da casa uma alma vazia, um aleijo. Arrancou-me um braço.
Mais tarde, não consigo lembrar quantas horas ou dias depois, mas me lembro que levantei, fui até a cozinha e os pães e frutas ainda estavam sobre a mesa. Fazia frio, mas eu não sentia nada, não sentia o frio ou a fome, não sentia o tempo correr por entre as frestas da cortina, só sentia doer o braço arrancado de mim.
A sua ausência era como a falta dos sentidos. A soturna manhã transformou a minha vida em um universo sem som, sem cheiro, sem cor e sem gosto. Há muito eu havia me habituado aos seus barulhos e canções, aos cheiros do seu banho e perfume, ao gosto da sua saliva misturado ao cheiro das frutas que você comia pela manhã. Minha casa estava gris desde que aquela porta se fechou.
Não sei dizer quando foi que eu deixei de odiar as manhãs, todas elas, não só as de sábado. Só sinto que não as odeio mais, é como olhar para o assassino de um filho e sentir piedade, ou não sentir nada. Houve um momento no meio do caminho em que eu pude não pensar em você, mas isso causava em mim uma certa estranheza, eu não me reconhecia ali. Mas me acostumei a não olhar a vida pelos seus olhos, eu deixei de olhar a vida.
As fechaduras das portas, os cadeados, todas as trancas da casa permaneciam intactas, pois eu lembrava de ter visto você levando as suas chaves e isso, de alguma forma, me trazia algum alento. Era a esperança cega que eu tinha em vê-lo entrar, num dia qualquer, colorindo a casa e enchendo-a de você.
Parei de contar o tempo depois do primeiro ano de dias sem manhãs, àquela altura eu já saía para o trabalho, visitava velhos amigos, sorria um pouco, tomava algumas bebidas que não me lembrassem o seu gosto. Eu até viajei, conheci Porto Rico sem que você estivesse ali. É claro que eu lembrava de quando os planos eram de um casamento em San Juan, com cerimônia e tudo quanto eu queria. No entanto, meu bem, eu conheci San Juan e as outras ilhas, tudo isso sem ser pelos seus olhos. Aos poucos, eu me desvencilhava de você.
N’outra noite, não lembro se quarta ou quinta-feira, eu ouvi a porta abrir, senti minha boca amargar, o mesmo gosto que o pão daquela manhã deixou. Era você, e veio sem me dizer nada, me tomou pelos braços sem nenhuma palavra, tinha o mesmo cheiro, o mesmo gosto. Nós nos amamos ali na sala, depois em nossa cama. Eu ouvi você dizer, depois de tantas horas, alguma coisa sobre o universo parar de girar quando era eu quem estava nos seus braços. Eu ouvi suas justificativas antecipando o pedido de volta, como um convite à vida. Mas eu estava morta.
Naquela mesma cama, onde só o meu cheiro te fazia sair do mundo, naquele mundo onde as suas células quiseram todas engolir as minhas, eu pude dizer sem lágrimas mas não sem dor o quanto eu te amei um dia. Eu disse, meu amor, um dia. O dia que tinha manhã, nesse dia e em tantos outros eu te amei.
Não sei em que parte do caminho eu deixei de te amar, mas sei que os dias não voltaram a ter manhã, nem com a sua volta. Eu não fui capaz de amá-lo outra vez, o meu amor engoliu a si mesmo, deixando em mim uma fotografia daquelas horas em que esteve comigo, compondo o álbum de retratos da vida que tivemos juntos. Em minha boca restou apenas o gosto do pão.
SOBRE O FIM
Despretensiosamente eu ouvia qualquer canção importada, tão somente para me dar ao luxo de pensar em você. Eu provocava as minhas lembranças remontando a memória de nós dois, como em um jogo de quebra-cabeças. Não posso dizer que o teu gosto ainda passeia em minha boca, só os beijos que não demos é que permanecem incólumes nas minhas recordações.
Resolvi agir apenas uma vez, era como se eu abrisse o armário e escolhesse a melhor roupa, um vestido de cores fortes que deixavam as minhas pernas à mostra, e eu sabia a conotação das pernas nuas, mas não deixava de mostrá-las.
Discar seu número causava em mim um certo desconforto, pois se um dia eu o soube de cor, entre as tantas coisas apagadas, aquela fração de números passou pelo mesmo processo de esquecimento, de negação, de desistência. Mas disquei assim mesmo, e não me causou estranheza encontrar sua voz do outro lado, nem por você estar em casa em um dia improvável, nem por ficarmos ali estarrecidos pela presença um do outro e uma gama de fios e chiados entre nós. Só o que eu ouvia, e a mim soava como o prelúdio de uma história já conhecida, era o seu convite para um encontro imediato.
E eu fui. De pernas cobertas e alma na mão eu fui ver o que havia naquela mesa além de nós, das nossas palavras dispersas e do encontro da sua alma, alma essa que você trazia dependurada pelo braço, com a minha, aquela que eu ainda arrastava pela mão. E as palavras se perderam noite adentro, passearam de bar em bar, foram morar na sala de TV, onde já riamos um do outro e, sem grandes pretensões, sonhávamos.
Eu sempre gostei das madrugadas, na hora dos gatos pardos é que a minha vida acontece. Senti frio durante a despedida. Senti que você nunca mais estaria ali e mais uma vez eu pedi que não fosse embora. É de confessar as minhas fraquezas que percebo as mínimas mudanças, minúcias amadurecidas em desejos vitais, com o passar dos anos. Mudou em mim a vontade insistente de te colocar dentro do universo que se fez quando eu disquei o seu número.
O indizível e o intocável continuam permeando a sua memória e agora vivem em seus pensamentos, mas o fascínio para mim está nas delicadezas de nós dois e na leveza que a vida assume quando estamos abraçados. Por mais denso que seja o que sentimos e por ser incomensurável a intensidade com que sentimos, eu sou tomada de uma leveza quase insustentável quando estou em seus braços.
Outra vez eu não sinto mais o sabor ou o cheiro que aquela madrugada tinha. Por muito que eu sinta o quanto qualquer gesto meu mudaria a direção dos seus passos, eu permaneço estática, por escolha ou pela força que ainda me falta, por não ver respostas da vida, de não encontrar caminho possível para andarmos lado a lado.
Volto a esquecer seu número no mesmo dolorido e covarde processo: negação, desistência e esquecimento. Como se me fosse possível esquecer.
Resolvi agir apenas uma vez, era como se eu abrisse o armário e escolhesse a melhor roupa, um vestido de cores fortes que deixavam as minhas pernas à mostra, e eu sabia a conotação das pernas nuas, mas não deixava de mostrá-las.
Discar seu número causava em mim um certo desconforto, pois se um dia eu o soube de cor, entre as tantas coisas apagadas, aquela fração de números passou pelo mesmo processo de esquecimento, de negação, de desistência. Mas disquei assim mesmo, e não me causou estranheza encontrar sua voz do outro lado, nem por você estar em casa em um dia improvável, nem por ficarmos ali estarrecidos pela presença um do outro e uma gama de fios e chiados entre nós. Só o que eu ouvia, e a mim soava como o prelúdio de uma história já conhecida, era o seu convite para um encontro imediato.
E eu fui. De pernas cobertas e alma na mão eu fui ver o que havia naquela mesa além de nós, das nossas palavras dispersas e do encontro da sua alma, alma essa que você trazia dependurada pelo braço, com a minha, aquela que eu ainda arrastava pela mão. E as palavras se perderam noite adentro, passearam de bar em bar, foram morar na sala de TV, onde já riamos um do outro e, sem grandes pretensões, sonhávamos.
Eu sempre gostei das madrugadas, na hora dos gatos pardos é que a minha vida acontece. Senti frio durante a despedida. Senti que você nunca mais estaria ali e mais uma vez eu pedi que não fosse embora. É de confessar as minhas fraquezas que percebo as mínimas mudanças, minúcias amadurecidas em desejos vitais, com o passar dos anos. Mudou em mim a vontade insistente de te colocar dentro do universo que se fez quando eu disquei o seu número.
O indizível e o intocável continuam permeando a sua memória e agora vivem em seus pensamentos, mas o fascínio para mim está nas delicadezas de nós dois e na leveza que a vida assume quando estamos abraçados. Por mais denso que seja o que sentimos e por ser incomensurável a intensidade com que sentimos, eu sou tomada de uma leveza quase insustentável quando estou em seus braços.
Outra vez eu não sinto mais o sabor ou o cheiro que aquela madrugada tinha. Por muito que eu sinta o quanto qualquer gesto meu mudaria a direção dos seus passos, eu permaneço estática, por escolha ou pela força que ainda me falta, por não ver respostas da vida, de não encontrar caminho possível para andarmos lado a lado.
Volto a esquecer seu número no mesmo dolorido e covarde processo: negação, desistência e esquecimento. Como se me fosse possível esquecer.
CEREJAS CADENTES
Eu via o vermelho-loucura das cerejas
Cadentes, como as estrelas que caem devagar
Do universo que construí, um céu de cerejas
A lua sempre cheia, o dia sempre noite
Do universo que inventei eu via você colhendo as cerejas
Você as jogava no mar vermelho-sangue, agrura
De dentro desse mundo só existiam três olhares
O meu, o seu e as cerejas refletidas em nossos olhos
Era um mundo tão nosso, tão doce, cheio de vermelhidão
Feche a porta do quarto e venha logo se deitar
Anda, as cerejas estão caindo, venha ver!
Faça um pedido e ficarei por aqui.
Cadentes, como as estrelas que caem devagar
Do universo que construí, um céu de cerejas
A lua sempre cheia, o dia sempre noite
Do universo que inventei eu via você colhendo as cerejas
Você as jogava no mar vermelho-sangue, agrura
De dentro desse mundo só existiam três olhares
O meu, o seu e as cerejas refletidas em nossos olhos
Era um mundo tão nosso, tão doce, cheio de vermelhidão
Feche a porta do quarto e venha logo se deitar
Anda, as cerejas estão caindo, venha ver!
Faça um pedido e ficarei por aqui.
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